segunda-feira, julho 06, 2009

Os politólogos

Este é o meu último artigo para o PÚBLICO. A conclusão de um projecto no Instituto de Ciências Sociais sobre o comportamento eleitoral e a criação de um novo projecto, ligado ao estudo da “qualidade da democracia”, vão exigir um nível de dedicação que me impede de cumprir este compromisso regular. Agradeço ao PÚBLICO, especialmente ao seu director, a oportunidade e a liberdade que me foram concedidas nestes três anos. Talvez um dia regresse, se as nossas vontades se conjugarem.

Termino esta colaboração com um tema, receio, algo “umbiguista”: qual o papel que os politólogos podem desempenhar no debate político? O tema suscitou um duríssimo artigo de Alain Garrigou numa edição recente do Le Monde Diplomatique, intitulado “Os abusos da autoridade científica”. Para Garrigou, a omnipresença dos politólogos nos meios de comunicação social franceses tem efeitos negativos sobre o debate político. “Ungidos da autoridade de uma opinião pública soberana revelada pela alquimia das sondagens”, eles partilham orientações ideológicas semelhantes, que escondem por detrás de uma capa de pretensa cientificidade, atestada pelos seus títulos académicos. Nada fazem senão pronunciar-se sobre os atributos, cálculos e estratégias das personalidades políticas, emitir “profecias sem riscos, porque logo esquecidas” e explicações pseudo-científicas e post hoc de eventos correntes. Em Portugal, um diagnóstico parecido foi feito há pouco tempo num conhecido blogue. João Galamba, no Jugular, criticava o papel dos politólogos portugueses nos debates sobre a política: interessados apenas nos factos e não nos valores, falando da política como uma realidade que lhes é exterior, os politólogos transmitem uma visão meramente “táctica” da realidade que empobrece a vida política.

Tudo isto faz-me recordar que, nos anos em que vivi nos Estados Unidos - a pátria da Ciência Política moderna e da maior associação profissional da disciplina - foram raríssimas as ocasiões em que vi politólogos nos ecrãs de televisão. E não foram poucas as queixas que ouvi na altura de colegas e professores sobre isto. Para os politólogos americanos, é a sua ausência (ou pelo menos da sua investigação e ideias) dos media, não a sua presença, que empobrece o debate. Este encontra-se quase completamente ocupado por políticos e por pundits como Bill O’Reilly, Keith Olbermann e Sean Hannity, estes últimos cumprindo a função de comentadores supostamente informados mas, na prática, fazendo parte de um sistema de produção de opiniões cada vez mais politizado e partidarizado, e cuja relação com alguns factos básicos conhecidos sobre a vida política é, no mínimo, problemática. Há quem ache até que, em parte, a responsabilidade é dos próprios politólogos americanos: há quase dez anos, num artigo na New Republic, Jonathan Cohn defendia que a Ciência Política americana ter-se-ia “tecnicizado” a um ponto tal que as suas principais ideias e conclusões se teriam tornado incomunicáveis ao grande público. Pessoas como James Q. Wilson, uma figura central do estudo empírico e científico dos fenómenos políticos mas também um “intelectual público” ouvido nos media, pertenciam ao passado. Sobrava Samuel Huntington. Hoje, nem ele. Com os chamados “media sociais”, as coisas estão a mudar, mas esta invisibilidade permanece nos media tradicionais.

Sugerir que a ausência dos politólogos - especialmente daqueles que “procuram separar análise política da sua posição política particular” - seria algo benéfico para o debate político parece-me tão insensato como defender, por exemplo, a ausência dos criminólogos, dos sociólogos, dos juristas e dos economistas dos debates sobre o crime, a sociedade, o direito ou a economia. Quem conhece as polémicas que rapidamente emergem quando se põe mais do que uma destas pessoas numa mesma sala sabe que nenhuma delas tem uma relação privilegiada com a Verdade. Mas têm alguns atributos particulares que não são irrelevantes: uma relação habitual com as fontes de informação empírica sobre os assuntos de que são especialistas; a inserção numa comunidade que lhes impõe custos de reputação se distorcerem deliberadamente essa informação; e uma preocupação com inserir aquilo que dizem numa teoria qualquer para explicar por que razão o mundo é como é. Têm “opiniões”? Influenciam aquilo que dizem? Obviamente. E é perfeitamente legítimo que, como outros cidadãos, tomem posições abertamente políticas, tal como vem sucedendo, por estes dias, com muitos economistas portugueses. Mas pedir-lhes uma declaração obrigatória de posições políticas de cada vez que abrem a boca ou que reconduzam tudo aquilo que concluem aos termos em que políticos e pundits prefeririam que os debates se dessem parece-me empobrecedor, e não enriquecedor, desses debates. Especialmente num contexto como o português. Uma das coisas que me ocupou bastante aqui nestes últimos três anos foi a notável resistência de muitos comentadores, dirigentes políticos e responsáveis de organismos públicos a substituírem as suas “opiniões sobre factos” por algumas das coisas que, com inevitáveis limitações, se julga saber sobre a sociedade e a política portuguesas. Não me parece que os principais problemas do debate e das políticas públicas em Portugal sejam a falta de opiniões ou a excessiva relação com a realidade.

Mas dito isto, tenho de reconhecer alguma razão a Garrigou e Galamba. A verdade é que não há quase dia em que abra o jornal ou ligue a televisão sem encontrar politólogos, apresentados com tais, a pronunciarem-se sobre as últimas declarações do político x, as consequências da decisão y ou aquilo que irá acontecer se z. Por vezes, talvez mais do que, em retrospectiva, teria sido desejável, um deles era eu. Em parte, é compreensível. Com redacções encolhidas e a multiplicação dos estagiários, escrever um artigo “de fundo” com a ajuda de quatro telefonemas deve ser uma tentação irresistível. A busca da “imparcialidade” e da “objectividade” leva à procura de fontes que possam ser apresentadas como dispondo desses atributos. A pressão da actualidade faz com que aquilo que interessa aos jornalistas seja “prever” um evento concreto ou as suas consequências, matéria para a qual, sabemos de inúmeras situações passadas, os cientistas sociais não se encontram necessariamente mais capacitados que outra pessoa qualquer. E resistir as estas solicitações é igualmente difícil, na medida em pode parecer uma assunção de irrelevância daquilo que fazemos para os debates que interessam. Mas pergunto-me se não valerá a pena tentar resistir mais um bocadinho. O nosso “negócio” é simples: descrever o mundo político o melhor possível e procurar explicações plausíveis para que ele seja como é. Só isso já é bastante. Para pundits, creio, já bastam os que existem.

terça-feira, junho 16, 2009

Auditar ou proibir?

Em 1992, as últimas sondagens realizadas no Reino Unido apontavam para uma eleição renhida, mas com uma curta vantagem dos Trabalhistas. Contados os votos, os Conservadores tinham ganho a eleição com 7,6 pontos de vantagem, subestimada pelas sondagens em cerca de 9 pontos percentuais. Seguiu-se uma controvérsia sobre a fiabilidade das sondagens e a Market Research Society reuniu um painel de peritos para investigar o assunto. O relatório final listava as possíveis causas para o fracasso das sondagens: a inadequação das variáveis utilizadas para definir quotas ou para ponderar os resultados de amostras aleatórias, levando a uma sub-representação de eleitores Conservadores; a desactualização dos dados das estatísticas nacionais utilizados; taxas de recusa diferenciais entre eleitores Trabalhistas e Conservadores (os “shy Tories”), levando a que os segundos estivessem ainda mais sub-representados nas amostras; e opções inadequadas quer para a redistribuição de indecisos quer para tratamento de “abstencionistas declarados”. Este relatório* teve consequências importantes na forma como se passaram a fazer sondagens no Reino Unido, seja na amostragem seja na forma como se passou a lidar com os eleitores que se afirmam “indecisos” ou “abstencionistas” nas sondagens.

À luz do recente fracasso das sondagens para as eleições europeias, por que não promover uma “auditoria” semelhante em Portugal após esta e futuras eleições? As fichas técnicas divulgadas na imprensa, ou mesmo as depositadas na Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), estão longe de fornecerem toda a informação necessária para apreciar a enorme quantidade de opções técnicas e práticas adoptadas pelos diferentes institutos. Uma investigação por um painel de peritos independentes poderia abordar em detalhe, por exemplo, as opções de amostragem, a construção dos questionários, a formação dos inquiridores ou o trabalho de campo. Com os dados brutos em seu poder, esse painel poderia apreciar as consequências de opções alternativas no tratamento dos dados, nomeadamente das “não respostas” e dos “indecisos”, assim como os desvios das amostras em relação a características conhecidas da população e as maneiras de os corrigir. Não faltariam pessoas capazes de fazer este tipo de auditoria. Se porventura se considerar que a ERC não é a entidade apropriada para a promover, ou que a APODEMO (a associação representativa das empresas do sector) está demasiado próxima dos interesses das empresas, certamente que na Associação Portuguesa de Sociologia, na Associação Portuguesa de Ciência Política ou na Sociedade Portuguesa de Matemática se encontrarão especialistas para formar semelhante painel. E é sempre possível convocar peritos estrangeiros, sem qualquer ligação aos interesses corporativos, económicos ou políticos em jogo.

Creio que quase todos teriam a ganhar com isto. Para o grande público, a noção de que o trabalho das empresas seria pública e regularmente escrutinado constituiria uma garantia adicional de que as empresas teriam ainda mais incentivos do que têm hoje para fazerem o melhor que está ao seu alcance dentro dos constrangimentos existentes. E haveria também benefícios para as próprias empresas. A realização destes estudos após cada eleição poderia contribuir para levar o batalhão de comentadores que, usando regular e sistematicamente as sondagens para fazer valer os seus argumentos e preferências políticas entre eleições, se mostram logo dispostos após as eleições a declarar a “incompetência” (após os fracassos) ou a “competência” (após os sucessos) das empresas de sondagens, a proferirem as suas sentenças com um pouco mais de informação. Para quem trabalha no ramo, isto seria também uma ocasião para aprender, repensar opções metodológicas e melhorar a qualidade do trabalho. “Segredos”? Há limites para o tipo de “segredos” que pode haver numa actividade com esta importância e potencial (apesar de raramente demonstrado) impacto político. É verdade que isto não garante que as coisas iriam sempre correr bem. Em várias eleições britânicas desde 1992, os desvios das sondagens foram ainda consideráveis. Em França, depois da catástrofe de 1997, onde as sondagens foram incapazes de antecipar a derrota da direita, os vários estudos realizados não impediram um segundo fracasso em 2002, com a subestimação da votação em Le Pen. Outros exemplos destas persistentes dificuldades poderiam ser avançados. Mas até a forma como esse fracassos são lidos e interpretados poderia ser um pouco mais tranquila e racional se fossem sempre seguidos de uma abordagem transparente do que se terá passado.

A alternativa que tem sido avançada a tudo isto é a de proibir a realização e divulgação de sondagens durante a campanha. Não seríamos caso único. Mas podemos, por isso mesmo, apreciar melhor as consequências de semelhante proibição. Na verdade, seria uma medida com a qual quer os partidos quer algumas empresas do sector poderiam concordar facilmente. Muitas continuariam a poder conduzir a maior parte do trabalho que já fazem hoje nestas áreas, ou seja – especialmente em véspera de autárquicas – trabalhos para os partidos políticos. E não seria a proibição da divulgação de sondagens nas últimas duas, três ou quatro semanas antes de uma eleição que impediria alguns partidos de fazerem aquilo que já fazem hoje. Por exemplo, comparar sondagens realizadas a um mês ou mais das eleições com os resultados finais, em eleições actuais ou passadas, sempre que isso lhes for útil para a sua argumentação política. Nem os impediria de anunciar, durante a campanha, a existência de “sondagens” realizadas por si ou para si próprios, cujos resultados e métodos permaneceriam completamente opacos e inverificáveis para os eleitores.

Nunca estive seguro de que as sondagens de intenções de voto divulgadas ao longo da campanha dessem uma grande contribuição para a nossa democracia. Elas alimentam a ilusão de que os resultados podem ser sempre infalivelmente previstos e ocupam porventura excessivo espaço na cobertura das eleições, transformando-as numa “corrida de cavalos” que talvez nos afaste do essencial que deveria ser discutido numa campanha. E já perdi as derradeiras ilusões sobre a capacidade do que escrevi acima para persuadir aqueles que preferem sempre ver nas sondagens um esforço deliberado para manipular a opinião pública. No que proponho, esses verão provavelmente um esforço adicional de manipulação, disfarçando sob uma discussão técnica aquilo que julgam ser um ânimo político das sondagens contra estes ou aqueles partidos. Seja. Não se pode discutir racionalmente com quem tem interesse em, precisamente, afastar a racionalidade da discussão. Contudo, aos restantes, mesmo que sejam uma minoria, sugiro que ponderem as consequências da proibição: mais desinformação, mais opacidade e mais (em vez de menos) manipulação política da opinião pública.

*Resumido aqui, e um estudo adicional aqui.

terça-feira, junho 02, 2009

Obrigados a votar?

Um dos temas mais curiosos que entrou pela campanha, pelas mãos de Carlos César, presidente do governo regional dos Açores, foi o do voto obrigatório. Segundo uma notícia do Público, as reacções por parte dos candidatos dos principais partidos foram invariavelmente negativas. Ilda Figueiredo e Vital Moreira consideraram a discussão inoportuna, à luz das alterações à lei eleitoral e à Constituição que exigiria. Paulo Rangel e Miguel Portas acham que o voto é um direito, nunca um dever. A notícia não relata o que Nuno Melo opina sobre o assunto, mas Paulo Portas parece fazer parte de uma improvável convergência com o BE e o PSD nesta matéria.

O tema merece um pouco mais de atenção, até porque os argumentos esgrimidos até ao momento não são particularmente interessantes ou decisivos. Do ponto de vista normativo, sobre o que a democracia é ou deveria ser, o argumento de que existe um “direito a não votar”, de que o voto não passa, na melhor das hipóteses, de um dever moral ou cívico e de que a imposição de penalizações a quem não vota é uma violação dos direitos e liberdades individuais é, claro, perfeitamente defensável. Tão defensável como a noção de que o voto seria apenas mais uma de muitas outras obrigações a que os cidadãos numa democracia podem ser vinculados  colocar os filhos na escola ou pagar impostos, por exemplo,  e de que ninguém é obrigado a fazer uma escolha que não deseje num sistema de voto obrigatório (mas apenas a comparecer na assembleia de voto, podendo votar em branco ou nulo). Anti-democrático? Vinte e nove democracias no Mundo prevêem hoje o voto obrigatório. Em países como a Bélgica, o Luxemburgo, a Austrália, o voto obrigatório é imposto com recurso sistemático a sanções monetárias consideráveis. É preciso algum contorcionismo argumentativo para conseguir estabelecer que estes três países, por exemplo, são menos “democráticos” ou menos “livres” que Portugal devido ao simples facto de punirem os eleitores que não votam.

Logo, num país onde o voto não é obrigatório, a discussão pode ser outra: resolveria o voto obrigatório os problemas que é suposto resolver e produziria os efeitos benéficos que lhe são atribuídos? O primeiro problema que o voto obrigatório alegadamente resolve é, claro, o da abstenção (se acharmos que a abstenção é um problema, o que não é tão consensual como possa parecer). Não há dúvida que, em certas condições, resolve mesmo. O factor que melhor explica a participação eleitoral nas eleições europeias é, precisamente, a existência ou não de voto obrigatório. Um estudo de Mark Franklin sobre as eleições europeias desde 1979 até 2004 mostra que, mesmo quando se tomam em conta os efeitos de outros factores, os países com voto obrigatório tiveram taxas de participação eleitoral 30 pontos acima dos restantes. Contudo, isso é verdade apenas na medida em que as sanções por não votar sejam efectivamente aplicadas. Num país como a Grécia, onde o voto é obrigatório, a abstenção nas últimas europeias chegou quase aos 40 por cento. Isso sucede porque, na Grécia, a obrigatoriedade do voto é principalmente um simbolismo legal sem sanções reais. E num país como Portugal, onde permanece incerteza sobre algo tão simples como precisão e a actualização dos cadernos eleitorais e onde o sistema judicial funciona com a esplendorosa eficiência de todos conhecida, as dúvidas sobre a possibilidade de criar um sistema com sanções efectivas para os abstencionistas e isenções justas para aqueles que de facto não pudessem votar são, naturalmente, muitas.

O segundo problema que o voto obrigatório alegadamente ajudaria a resolver seria o do desinteresse, desinformação e cinismo do eleitorado em relação à política. Deste ponto de vista, levados inicialmente a votar pela obrigação de o fazer, os eleitores acabariam por obter mais informação e desenvolver mais interesse pela política. Mas não há provas de que assim seja. Num estudo recentemente realizado na Bélgica, Bart Engelen e Marc Hooghe compararam os níveis de informação política dos eleitores que afirmaram votar meramente para evitar a sanção com os restantes, mostrando que os primeiros permanecem menos informados e interessados na política. E uma experiência recente no Canadá, comparando dois grupos de estudantes – uns que receberam um incentivo financeiro por votarem e outros não – mostra que esse incentivo não produziu consequências na sua motivação para se informarem sobre as eleições.

O terceiro problema que o voto obrigatório supostamente resolve é o da participação assimétrica de grupos sociais e ideológicos. Naturalmente, em países como a Bélgica ou a Austrália, pobres e ricos, mais ou menos instruídos e pessoas que se situam à esquerda ou à direita participam igualmente nas eleições. O mesmo pode não suceder noutros contextos onde o voto não é obrigatório. Desta forma, a obrigatoriedade do voto serviria um propósito de igualdade política: se todos votarem, os interesses de todos serão tomados em conta na representação, nas decisões políticas e nas políticas públicas. Mas se é verdade que, por exemplo, nos Estados Unidos, os mais pobres, os menos instruídos e as minorias étnicas votam menos, isto não se passa da mesma forma em todos os contextos. Em Portugal, por exemplo, o rendimento, o status social e a instrução têm efeitos diminutos na participação eleitoral, e o mesmo sucede com o posicionamento ideológico à esquerda ou à direita. Muitos outros países exibem padrões semelhantes. Um estudo recente publicado na revista Economics and Politics sugere uma relação entre o voto obrigatório e menores desigualdades na distribuição dos rendimentos. Mas os factores que causam a desigualdade são muitos e complexos, e não é garantido, de resto, que qualquer relação causal entre a obrigatoriedade do voto e a igualdade não seja, afinal, na direcção oposta à sugerida.

Em suma, nuns casos, não é garantido que o voto obrigatório resolva os problemas que é suposto resolver, enquanto que, noutros o problema que resolve pode lá não estar. De resto, há um outro problema que ninguém pode achar, creio, que mais participação possa por si só resolver: 90% de participação nas Europeias dariam a estas eleições efeitos mais claros, tornariam o sistema político europeu mais transparente e os “défices democráticos” nacionais e europeu uma coisa do passado? Perguntem aos belgas, aos gregos, aos luxemburgueses e aos cipriotas. Não creio que eles tenham melhores coisas a dizer sobre o assunto que os portugueses.

segunda-feira, maio 18, 2009

Num país a sério

No PÚBLICO de anteontem, entre outras considerações que não discuto aqui, Pacheco Pereira afirmava que, se Portugal fosse um país a sério, "não deixaria sequer um político balbuciar (como fazem no Bloco de Esquerda), face aos acontecimentos no Bairro da Bela Vista, que se trata de uma 'questão social'". A Igreja poderia fazê-lo porque "o seu Reino não é cá na Terra". "Mas a caridade não é a missão do Estado. A missão de Estado é garantir a nossa segurança, sem mas, nem ambiguidades." E passava de seguida a explicar por que razão as crises económicas e sociais nada têm a ver com o crime: "Os pobres não fazem carjacking, não se armam com uma caçadeira e não vão assaltar bancos, bombas de gasolina, ourives e ourivesarias, e caixas multibanco, para comprar roupa de marca." Está assim demonstrado.

Eu tenho uma opinião algo diferente sobre o tipo de coisa que faria de Portugal "um país a sério". Se Portugal fosse "um país a sério", o debate público sobre este tipo de questões já não ocorreria ao nível em que Pacheco Pereira o colocou. Haveria uma comunidade académica pujante de investigadores dedicados ao estudo do fenómeno do crime, cujo papel no debate público sobre este assunto já teria inibido qualquer pessoa que se apresente como "historiador" (ou seja, como um cientista social) de escrever o que Pacheco Pereira escreveu com objectivos única e exclusivamente políticos. Essa comunidade poderia já ter explicado, por exemplo, que não há hoje praticamente dúvidas de que os factores que melhor explicam a incidência de crimes num determinado contexto são a pobreza das populações e a falta de mecanismos de "controlo social" (em particular, a existência de alta instabilidade familiar). Que os efeitos positivos da encarceração sobre o crime são contrabalançados por efeitos negativos, ligados à quebra da estrutura familiar e à aprendizagem do crime nas prisões. Lembrariam também que, num "país a sério" como os Estados Unidos, o Departamento de Justiça e a Associação Nacional de Polícias estão seriamente preocupados com os efeitos da actual recessão económica na incidência de vários tipos de crimes, incluindo não apenas fraudes mas também todo o tipo de furtos, vandalismo, tráfico de drogas e violência doméstica. Que um conhecido estudo do Banco Mundial, utilizando dados de 86 países ao longo de 14 anos, mostra como as crises económicas aumentam a criminalidade. E que, na base da investigação existente, os factores que menos ajudam a explicar a criminalidade são a dureza das penas, o número de efectivos policiais e o aumento de recursos para as polícias. Na ciência, e ainda menos nas "ciências sociais", não há certezas. Mas é o melhor que temos. Fazer de conta que não existem, para quem se apresenta como fazendo algo mais do que mero combate político, justifica-se apenas por ignorância ou cegueira voluntária. Num país a sério, uma ou outra seriam dificilmente desculpáveis.

Num país a sério, um partido de centro-direita também já teria percebido que as conclusões destes estudos não são nem "de esquerda" nem "de direita", e não impedem a existência de debate ideológico e políticas alternativas. Há muitas maneiras de lidar com aquelas que se sabem ser as principais causas do crime. Há formas de combater a pobreza diferentes das políticas sociais e subsídios aos quais parte da direita ideológica se opõe. Há uma sólida agenda conservadora que pode ser avançada sobre a questão da estabilidade das famílias. O fortalecimento das normas de controlo social, obtido através do apoio a organizações culturais, de moradores e de jovens a nível local, favorecendo o estabelecimento de relações entre associações representativas de grupos étnicos e religiosos e a criação de um ambiente de confiança mútua entre as polícias e as populações não tem por que ser intrinsecamente um desígnio "de esquerda". Note-se, de resto, como é triplamente míope a condescendência com que Pacheco Pereira trata o papel da Igreja Católica e as declarações de D. Manuel Martins e D. Jorge Urtiga sobre o caso da Bela Vista. Primeiro, porque poucas instituições conhecem tão bem no terreno as realidades dos "bairros difíceis" como as paróquias e os agentes pastorais. Segundo, porque o seu papel no fortalecimento das normas de controlo social junto das comunidades locais pode ser fulcral, até em ligação a outras confissões religiosas. E, finalmente, é míope em termos estritamente políticos: ao enfatizar exclusivamente o papel securitário do Estado nestas matérias - "garantir a nossa segurança, sem mas, nem ambiguidades" -, Pacheco Pereira deixa aos seus adversários políticos o benefício de serem eles a proporem as soluções ao mesmo tempo mais prometedoras e mais rentáveis do ponto de vista político-eleitoral, tais como os "contratos locais de segurança" que o actual Governo vai celebrando pelo país com várias autarquias*. É bom que haja oferta partidária para todos os nichos de opinião sobre esta questão, inclusivamente as daqueles que acham que tudo se resolverá exclusivamente com penas mais duras e mais polícias. Mas essa é uma função que o CDS-PP já cumpre muitíssimo bem.

Finalmente, num país a sério, o repetido recurso a falácias argumentativas sobre as questões da "responsabilidade individual" já teria sido de tal modo sancionado pública e intelectualmente que certamente as ouviríamos com menos frequência. Já não ouviríamos dizer, por exemplo, que procurar explicar as causas do terrorismo significa defender os terroristas. Que conhecer e compreender as causas do insucesso escolar significa defender o "facilitismo" nas escolas ou impedir o reconhecimento do mérito individual. Que discutir as causas do crime e procurar agir sobre elas impede de alguma forma que se defenda a vigilância das zonas perigosas ou a repressão da criminalidade. Que constatar a baixíssima relação custo/benefício que a investigação sobre o tema mostra entre o investimento em (caras) medidas securitárias e a redução do crime significa abandonar o policiamento ou reduzir as penas. Ou que constatar que um fenómeno qualquer tem causas sociais, políticas e económicas significa desculpar comportamentos individuais inaceitáveis. Mas numa coisa Pacheco Pereira tem razão: deste e doutros pontos de vista, Portugal não é mesmo um país a sério. Se fosse, eu não teria de ter escrito este artigo.

*Para que fique tudo transparente, o CESOP/UCP, que dirijo, faz parte do contrato local de segurança de Loures, estando encarregado de medir os seus efeitos nas taxas de vitimação e no sentimento de segurança das populações.

O artigo tinha um erro no original - o sentido de duas frases no parágrafo final - que corrigi aqui.

terça-feira, maio 05, 2009

Ainda Lisboa e os automóveis

Há quinze dias, escrevi aqui sobre os efeitos positivos conhecidos da introdução de uma "taxa de congestão" sobre os veículos que entram no centro das cidades de Londres e Estocolmo. Critiquei alguns dos argumentos normalmente utilizados para afastar a possibilidade da aplicação de um sistema congénere na cidade de Lisboa. Recebi algumas críticas ao que escrevi, que me pareceram suficientemente interessantes para voltar a escrever sobre o assunto.

Um primeiro tipo de críticas invocou "direitos". Quem mora fora de Lisboa - ou de uma qualquer área que dentro do concelho se defina como "centro" - tem tanto "direito à cidade" como os que lá moram. Há aqui três falácias. A primeira consiste em supor que a introdução de taxas para entrar em Lisboa de automóvel retira "direito à cidade", como se não houvesse outras formas de entrar e circular em Lisboa e como se o excesso de trânsito não fosse, ele próprio, atentatório do "direito à cidade". A segunda consiste em supor que a faculdade de circular de automóvel por onde muito bem se entenda é um "direito" ilimitado. O problema é que, mesmo que fosse um "direito", não há cidade nenhuma no mundo - à excepção talvez de Mogadíscio e outras cidades de países onde a existência de um estado é duvidosa - onde esse direito seja ilimitado. Território e estradas são bens comuns, cuja utilização o Estado e as autarquias têm a obrigação de regular. A terceira falácia consiste em supor que a introdução de uma taxa de congestão à entrada da cidade exclui a imposição de custos para a circulação dos residentes. Não exclui. Tecnicamente, a solução pode tornar-se mais complicada, mas pode ser simplificada se os residentes pagarem mais do que pagam hoje por lugares de estacionamento ao pé de sua casa ou, genericamente, num imposto municipal sobre veículos. Mas neste capítulo da "igualdade de direitos" - a terminologia é inadequada, mas enfim - entre residentes e não residentes, há também três coisas que importa ter em conta. Primeiro, a utilização do carro na cidade tem externalidades negativas que incidem desproporcionalmente sobre os residentes em comparação com os não residentes, pelo que o custo tem sempre de ser superior para os segundos. Segundo, este diferencial pode ser manipulado e, eventualmente, aumentado, se se quiser usá-lo para dar mais incentivos para a fixação no centro. Terceiro, e mais importante, toda esta discussão sobre "igualdade de direitos" ignora completamente os direitos daqueles que, fora ou dentro da cidade, não circulam de automóvel.

Isto leva-nos para o segundo tipo de críticas: as que invocam preocupações de equidade social. Afinal, portagens à entrada da cidade incidiriam sobre os "pobres" residentes nas áreas suburbanas, com o único efeito de melhorarem a qualidade de vida dos "ricos" residentes. Deixemos de lado a validade de uma análise que só vê "pobres" na linha do Estoril e "ricos" na Ajuda, Marvila ou S. Jorge de Arroios. Mais importante é notar o seguinte. Primeiro, os mais "pobres" não vêm de carro para Lisboa nem andam de carro em Lisboa. Vêm e circulam de transportes públicos, e têm depois, ainda por cima, de suportar os efeitos do uso do automóvel por outros, entre eles a drástica degradação da qualidade de serviço dos transportes públicos causada pelo excesso de tráfego de automóveis particulares. São eles os principais prejudicados pela actual situação. Para além disso, como recorda Nicolás Stier, professor na Columbia University, a propósito da possível introdução de um sistema semelhante em Manhattan, as - importantes - preocupações com a equidade do sistema podem ser concretizadas de diversas formas, tais como, por exemplo, usando as receitas para melhorar os transportes públicos nas áreas mal servidas ou tornando o montante pago em taxas de circulação parcialmente dedutível para famílias com mais baixos rendimentos. O ponto central sobre a questão da equidade é, afinal, o seguinte: como assinalam Jonas Eliasson e Lars-Göran Mattsson num estudo sobre a taxa de congestão de Estocolmo e, precisamente, os seus efeitos diferenciais sobre grupos sociais concretos, as consequências redistributivas de um sistema deste género dependem da forma como ele é desenhado e, crucialmente, da forma como as suas receitas são aplicadas. No caso de Estocolmo, os autores concluem que a taxa acabou por ter efeitos progressivos (e não regressivos) e os custos incidiram desproporcionalmente sobre os residentes do centro com mais elevados rendimentos. Dependendo do desenho do sistema, pode não ser assim, mas também não tem de ser o contrário.

O último tipo de críticas baseia-se na ideia de que um sistema que tome em conta todos estes aspectos é uma impossibilidade prática em relação à qual devemos ser profundamente cépticos. Os críticos não acreditam que as receitas de uma taxa de congestão viessem a ser de facto aplicadas na melhoria dos transportes públicos de acesso à cidade. "As portagens que já são pagas para entrar em Lisboa nunca, até hoje, foram utilizadas para reforçar o sistema público de transportes", informa-nos João Pinto e Castro no blogue Jugular. A consequência seria que os residentes dos subúrbios teriam mais dificuldades a chegar a Lisboa. Terrenos e casas em Lisboa ficariam mais caros, levando a que pessoas e empresas procurassem outros concelhos para se localizarem. Em alternativa, João Pinto e Castro propõe outra via, "a única que nos levará a algum sítio onde vale a pena ir: a constituição da região político-administrativa de Lisboa".

A resposta é típica daquilo a que, um dia, outro economista chamou a "retórica da reacção": um pessimismo supostamente "realista", que aponta efeitos nulos ou mesmo perversos a uma proposta de mudança, e que avança, em alternativa, um chavão genérico. Mas se é "pessimismo realista" que queremos, aí vai: enquanto não houver barreiras significativas à entrada de veículos em Lisboa, as câmaras dos concelhos limítrofes e o Governo podem ficar descansados. Podem continuar a acrescentar faixas de rodagem às estradas que acedem a Lisboa, sem que as pessoas que lá vivem sintam real necessidade de exigir mais e melhores transportes públicos, especialmente dos locais onde vivem para os terminais ferroviários e fluviais. Podem dar prioridade a mais umas rotundas com fontes no meio, em vez de construírem parques de estacionamento junto a esses terminais. Podem continuar a dizer que "não há meios". Que o "verdadeiro problema" é outro (é sempre outro). E podem fazer reuniões, seminários e debates sobre esse "verdadeiro problema". Por exemplo, a "constituição da região político-administrativa de Lisboa". Boa sorte com isso, então.

segunda-feira, abril 20, 2009

Uma experiência para Lisboa

Eram sete horas da manhã do dia 17 de Fevereiro de 2003 quando ocorreu uma mudança histórica na cidade de Londres. A partir desse momento, todos os veículos que quisessem circular ou estacionar no centro da cidade durante os dias de semana passaram a pagar uma "taxa de congestão", que é hoje de oito libras (nove euros). Os residentes têm direito a um desconto de 90 por cento e estão isentos de pagar a taxa se estacionarem em garagens ou zonas designadas. Veículos com baixas emissões de CO2, de emergência ou usados por deficientes, transportes colectivos, assim como motos e bicicletas estão também isentos. O cumprimento destas regras é aferido através de câmaras que identificam automaticamente as matrículas, que são diariamente confrontadas com o registo dos pagamentos feitos.

Quais os efeitos deste medida? Num artigo de Outubro de 2006 do Journal of Economic Perspectives, Jonathan Leape resume as conclusões dos estudos existentes. O número de veículos privados que circulam na zona central baixou em 30 por cento. Mais de metade dos indivíduos que deixaram de usar o carro para entrar na zona central passaram a usar transportes públicos. A este respeito, parece ter-se verificado um "círculo virtuoso": o aumento de passageiros aumentou as receitas, o que permitiu novas rotas, mais veículos e melhoria de serviço; essa melhoria de serviço, ajudada também, naturalmente, pela redução da congestão, gerou ainda mais passageiros e, logo, mais receitas; e as receitas da própria taxa têm sido desviadas para os transportes públicos, melhorando serviço, aumentando passageiros e diminuindo o tráfego de veículos privados. Todas as análises custo/benefício, apesar de reconhecerem que os custos de gestão do sistema são muito superiores ao desejável, apontam para um saldo positivo, onde se incluem diminuição de emissões de CO2, de acidentes, de tempo de viagem e dos custos de manutenção das vias rodoviárias. Um estudo publicado em 2007 no Journal of Transport Economics and Policy mediu o impacto da "taxa de congestão" no comércio e concluiu que o efeito médio foi nulo. É verdade que hoje, seis anos depois, muitos dos ganhos obtidos em tempo de viagem parecem ter sido perdidos. Tendo em conta que os níveis de tráfego não aumentaram, isso parece dever-se, em grande medida, quer a um programa de obras públicas que vem afectando Londres de há alguns anos para cá, quer ao facto de as vias reservadas para autocarros, bicicletas e motas terem aumentado à custa das que servem os veículos privados.

Estocolmo é ainda melhor exemplo de uma capital europeia que introduziu um esquema deste tipo, protegendo uma área central de 30 km2. Foi em Agosto de 2007, precedido de um período experimental na primeira metade de 2006, ao qual se seguiu um referendo local. As formas de pagamento são bastante mais fáceis que em Londres e incluem um sistema tipo "via verde". Em Março passado, a revista Transportation Research dedicou um número inteiro ao assunto. Conclusões? Efeitos iguais ou maiores que em Londres: diminuição do tráfego e do tempo de viagem; ausência de efeitos negativos no comércio; transferência de viajantes para transportes públicos; ausência de efeitos regressivos ou progressivos em termos de equidade na distribuição dos custos; e redução de acidentes, poluição e custos de manutenção da via pública. E três lições fundamentais. Primeiro, a importância de um "período experimental" para persuadir os habitantes da viabilidade da medida e dos seus visíveis benefícios. Durante este período, o apoio popular passou de minoritário a maioritário, e vem crescendo desde 2007. Segundo, a necessidade de acompanhar esta medida de acções de aumento da qualidade de serviço dos transportes e de melhoria da gestão do tráfego nas zonas adjacentes. E terceiro, a importância de adoptar sistemas de "apoio à decisão" e acompanhamento: modelos econométricos sofisticados de medição e previsão de efeitos, inquéritos de opinião e estudos de impacto anuais. Como afirmam Jonas Eliasson e os seus colegas na introdução ao número especial, o debate já não é sobre se a "taxa de congestão funciona", mas sim sobre como desenhar o sistema e como usar as suas receitas.

Eu sei que votar numa eleição não é fácil e há muita coisa a considerar. Mas espero que os mais de 500.000 eleitores que podem votar nas autárquicas em Lisboa aceitem deste seu concidadão um critério que simplificará muito a nossa decisão. Irão dizer-vos que a rede de transportes públicos em Lisboa não permite que se impeça a entrada de carros. Mas vocês sabem, como eu, que isso não é verdade. Vocês vêem, como eu, autocarros vazios em hora de ponta, parados por detrás de um mar de carros nos eixos centrais por onde se passa quando se entra e sai de Lisboa. É preciso melhorar? Sim, e irão dizer-vos que não há dinheiro. Mas vocês agora já conhecem o "círculo virtuoso" de onde os recursos para melhorar os transportes públicos podem vir. Pensem nas quantidades brutais de dinheiro que continuam a ser investidas numa rede de Metro (e nos transtornos brutais dessas obras) que já serve bem a cidade e que poderiam ser desviadas para transportes de superfície numa cidade mais descongestionada. E se vos disserem que o comércio vai ser prejudicado, já sabem que vos estão a mentir.

Vão também dizer-vos que aqueles que vêm para a cidade não têm bons meios para cá chegar sem ser o carro particular. Mas mesmo que isso fosse inteiramente verdade - e vocês sabem bem que não é -, pensem de quem será a responsabilidade, e como o actual estado de coisas desresponsabiliza as câmaras dos concelhos limítrofes de melhorarem os transportes públicos nos seus próprios municípios e os governos de investirem em melhores maneiras de chegar à nossa cidade. Pensem nos custos - em tempo, produtividade, saúde, segurança, vida familiar, conforto - que todos pagamos pelo actual estado de coisas. Vocês sabem tão bem como eu que muitos dos candidatos que temos tido à Câmara de Lisboa a vêem como mero degrau para outros cargos políticos e que, por isso, têm medo de hostilizar o eleitorado dos concelhos vizinhos. Mas isso tem sido um problema nosso que, felizmente, a democracia ajuda a que possamos fazer com que seja apenas um problema deles. É simples: candidato que não proponha uma maneira séria e radical de impedir a entrada de carros na nossa cidade não merece um único dos nossos votos. Vamos fazer essa experiência? Vão ver que funciona.

segunda-feira, abril 13, 2009

Três subtilezas sobre as eleições europeias

Um dos temas das próximas semanas será o das eleições europeias e os seus prováveis resultados. Pegue-se num qualquer manual de Ciência Política e procure-se um capítulo ou uma secção sobre as eleições para o Parlamento Europeu. Há uma expressão que certamente não faltará: "Eleições de segunda ordem". O conceito, originalmente avançado num artigo de Karlheinz Reif e Hermann Schmitt, significa duas coisas. Por um lado que, para eleitores e agentes políticos, estas eleições tendem a ser vistas como secundárias em relação ao principal combate eleitoral em cada país, nomeadamente, aquele onde se determina quem governa. Por outro lado, que as eleições europeias são combates onde o discurso dos agentes políticos, as opções dos eleitores e os próprios resultados são contaminados pelo que está em jogo na arena eleitoral mais importante - a das legislativas - em vez de serem influenciados por aquilo que, formalmente, estaria em jogo nessas eleições: a composição do Parlamento Europeu.

Daqui decorrem algumas consequências. Primeiro, vota-se menos nas eleições europeias que nas legislativas. Segundo, aqueles que votam fazem-no de maneira diferente. Por um lado, eleitores que teriam incentivos para votar "útil" - preocupando-se mais com afastar determinados partidos do poder do que em votar no partido que mais preferem - têm, nas eleições europeias, menos razões para o fazerem. Por outro lado, eleitores próximos dos partidos de governo mas insatisfeitos com o seu desempenho têm incentivos para sinalizarem esse descontentamento sem correrem o risco de, ao fazerem-no, comprometerem as suas chances eleitorais numa eleição que "realmente conte". O resultado agregado destes comportamentos descreve-se facilmente: maior abstenção, piores resultados para os grandes partidos e, entre estes, piores resultados ainda para os partidos no Governo. Portugal não é excepção a estes padrões. A abstenção nas europeias foi sempre superior à das legislativas. O partido no Governo teve sempre piores resultados nas europeias do que nas legislativas anteriores, e o mesmo sucede com os dois maiores partidos.

Mas há três subtilezas a adicionar a estas conclusões, sublinhadas por três estudos publicados nos últimos anos sobre o tema. A primeira é que a magnitude dessas perdas parece mudar consoante o momento no ciclo eleitoral onde as europeias têm lugar. Na bibliografia sobre o tema há um consenso: quando as europeias se dão pouco tempo depois das legislativas - dentro do chamado período de "lua-de-mel" governamental - a punição para os Governos tende a ser menos expressiva. Contudo, alguns estudos mostram que a punição dos maiores partidos em geral e do partido de Governo em particular volta a ser menor quando as europeias têm lugar no final do ciclo eleitoral, ou seja, mais perto das legislativas subsequentes. O raciocínio é simples: quer para os agentes políticos, quer para os eleitores, na medida em que as europeias sejam vistas como algo mais do que um exercício inconsequente a meio do mandato, os incentivos voltam a mudar. Da parte dos partidos, os esforços de mobilização e de dramatização redobram-se e, da parte dos eleitores, a ideia de que as europeias permitem votar apenas "com o coração" torna-se menos prevalecente. Logo, enquanto os eleitores próximos do partido de governo se sentem menos à vontade para o punir "sem consequências", os eleitores que noutras circunstâncias votariam "sinceramente" têm maiores incentivos para votar útil, voltando a fortalecer os maiores partidos. O caso português dá algum apoio a esta ideia: como mostram André Freire e Efitichia Teperoglou num estudo de 2007 sobre as eleições para o Parlamento Europeu nos países da Europa do Sul, publicado no Journal of Elections, Public Opinion and Parties, as eleições europeias realizadas em Portugal onde as perdas do Governo foram menores foram também aquelas que se realizaram quer nas fases iniciais, quer nas fases terminais dos mandatos governamentais.

A segunda subtileza, revelada num artigo de 2004 de Federico Ferrara e Timo Weishaupt na European Union Politics, é que a magnitude dos ganhos e perdas de qualquer partido - do Governo ou da oposição, grande ou pequeno - nas europeias em relação às legislativas depende também do grau de unidade interna que exibe em relação aos temas europeus, seja essa unidade a favor ou contra a integração. Como explicam os autores, especialmente em temas onde falta informação aos eleitores, quanto menos ambígua for a posição de um partido e quanto mais se transmitir a ideia de que as posições da liderança são claras e apoiadas no interior do partido, maior a capacidade de atrair eleitores ou, pelo menos, mitigar perdas.

A terceira subtileza resulta de um estudo publicado já este ano no British Journal of Political Science, por Sara Hobolt, Jae-Jae Spoon e James Tilley. O que Hobolt e os seus colegas mostram é que os castigos ao Governo variam também de acordo com o tom geral da cobertura mediática das eleições europeias. Como os partidos de governo são geralmente mais pró-europeístas que o eleitor mediano, quanto mais a campanha tiver um tom eurocéptico, mais os eleitores tendem a dar relevo ao tema e à sua distância em relação ao partido de governos nessa matéria, punindo-o eleitoralmente.

Muito do que se vem escrevendo sobre as (más) perspectivas do PS nestas eleições resulta do modelo geral, e deverá estar genericamente correcto: ninguém imagina que o PS possa replicar nas europeias os resultados de 2004 ou 2005. Mas não toma em conta as subtilezas. Em 2004, as europeias tiveram lugar a meio do mandato de um governo que apresentou uma candidatura conjunta de dois partidos cuja unidade interna em relação à Europa era duvidosa, e no rescaldo de uma cobertura mediática da campanha que, em Portugal e fora, foi uma das mais negativas em relação à Europa de que há memória. Em 2009, as atitudes em relação à integração, que certamente se irão reflectir na cobertura da campanha, são hoje, num momento de profunda crise económica, bem menos negativas do que em 2004. A eleição terá lugar no final do mandato. O PS, certamente preocupado com o voto que possa perder para eleitores mais diletantes, já anunciou que as eleições "não são a feijões" e as suas clivagens internas - profundas e reais - não têm a ver com a Europa. Claro que, no meio de tudo isto, a única coisa anómala é o facto de o PSD não ter sequer iniciado a sua campanha nem ter um cabeça de lista. Mas a política tem por vezes - e digo isto sem ironia - razões que a Ciência Política desconhece. Em Junho veremos o saldo de tudo isto.